quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Crítica de Cinema: O Palhaço.

O Palhaço, Iden, Brasil, 2011.
Direção: Selton Mello
Roteiro: Selton Mello e Marcello Vindicatto
Elenco: Selton Mello, Paulo José, Larissa Manoela, Giselle Motta, Moacyr Franco, Tonico Pereira, Fabiana Karla, Jackson Antunes e Hossen Minussi.


Por Caio Viana.
Não conheço o trabalho anterior de Selton Mello na cadeira de diretor, o filme Feliz Natal. Dito isso, apenas observando sua nova produção posso afirmar que o rapaz é um gênio. O Palhaço transborda talento e é conduzido de maneira leve, fazendo com que o público sequer perceba a passagem do tempo ao longo da projeção e, paralelamente, trata-se de uma película profunda e reflexiva. São tantos os momentos inspirados que tive que selecionar aqueles que julguei mais relevantes para citar aqui.
Na obra, acompanhamos a trajetória de Benjamin (Mello) e seu pai (Paulo José), palhaços e donos do Circo Esperança, que vagueiam pelos interiores do Brasil juntamente com sua trupe buscando o dinheiro para o seu sustento. Porém, acima do dinheiro, os artistas demonstram serem guiados pelo inextricável prazer dos palcos. Enquanto isso, Benjamim inicia uma caminhada particular a fim de encontrar seu verdadeiro caminho no mundo.
A primeira cena de O Palhaço já é capaz de traduzir o filme, em termos. Vemos cortadores de cana labutando debaixo de um pesado sol enquanto a câmera os mantêm em foco e “embaça” a visão que poderíamos ter da estrada que cruza o canavial. Dela, surgem veículos antigos, porém coloridos, ainda desfocados e sendo anunciados por uma fanfarra. Só quando esses cruzam com os trabalhadores é que conseguimos vê-los em detalhes. Há ali um choque entre dois mundos: um, empoeirado, árduo e real ao extremo, e outro, onírico e dotado de cores e sons que fazem saltitar o espírito. Como se não bastasse todo o capricho do contato inicial que temos com a obra, vale ressaltar seus créditos introdutórios que se anunciam através de uma canção com leves pitadas do Bolero de Ravel, na trilha soberba de Plínio Profeta.
A visão de Selton Mello vai mais além em trechos memoráveis como aquele em que, auxiliado na montagem por Marília Moraes, o diretor traça um interessante paralelo entre o mundo do circo e o cotidiano no qual Benjamim se insere ao abandonar seus companheiros. Repetindo cenas comuns como a chegada a um hotel, o deslocamento em um ônibus e noites de insônia num quarto penumbroso, sem delongas o espectador é capaz de perceber como Benjamim destoa daquele lugar. Interessante também é notar o olhar clínico do cineasta ao contrapor Benjamim a Aldo, um mecânico urbanóide aqui interpretado pelo irmão de Selton, Danton Mello. Vendo-os frente a frente, mesmo aqueles que desconhecessem o parentesco seriam capazes de enxergar pelo espelho opositor que foi criado, mais uma vez apontando para o público que Benjamim não pertence àquele universo.
Mas nem só de drama vive O Palhaço. Em trechos impagáveis, elenco e diretor acertam o timing cômico e nos fazem chorar de tanto rir, como no encontro da trupe com os gêmeos mecânicos Beto e Deto, interpretados por um inspiradíssimo Tonico Pereira. Há também à ida dos membros do circo ao distrito policial, no qual um irreconhecível Moacyr Franco incorpora o delegado Justo, que de justo nada tem e ainda aplica-lhes um sermão interminável sobre esposas e gatos. E ainda posso citar os irmãos João e Chico Lorota, que pontuam o filme com seus engodos e nos fazem rir da placa que mantêm durante suas apresentações com os dizeres: “Não atire nos músicos”.
A direção de arte de Cláudio Amaral Peixoto acerta ao recriar os ambientes interioranos quase hostis em sua escassez latente, bem como nos parcos pertences da trupe que acabam se opondo à sua vontade em prosseguir. Assim também é o figurino de Kika Lopes, que confere os atributos certos aos atos circenses sem que estes soem exagerados ou deslocados, e contribuem bastante para o andamento do enredo, como no momento em que Benjamim, desolado e deitado em sua cama, olha para seus sapatos coloridos e longilíneos que diferem do restante de sua figura. Adrian Teijido, cinegrafista, auxilia a identificarmos o distanciamento entre os mundos ao usar uma paleta de cores pardas, quase mortas, para pintar o sertão, enquanto nas apresentações do Circo Esperança mergulhamos em um oceano de tons pulsantes.


As composições dos personagens são um show à parte. Se de um lado temos Selton Mello encarnando um Benjamim pusilânime, doutro percebemos o desejo de prosseguir, apesar das intempéries, do palhaço Puro-Sangue, vivido por Paulo José. Há ainda a sensualidade e o distanciamento nas expressões, olhares e movimentos de Giselle Motta, no papel da dançarina Lola, bem como a inocência vívida de Larissa Manoela, com sua protetora e doce Guilhermina.
Através de uma direção sensível de Selton Mello, com muitas cenas silenciosas feitas para serem apreciadas, O Palhaço se torna o melhor filme nacional do ano, e entra para a lista dos grandes de 2011 como uma obra singular ao compor um final poético que transborda vitalidade e nos faz sair do cinema renovados, sem jamais esquecer a trupe do Circo Esperança que, apesar das adversidades, mantém-se sempre unida emocionando o espectador.

Caio Viana é crítico de cinema editor do Cinematrilha.

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