quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Crítica de Cinema: Os Homens que Não Amavam as Mulheres

Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres, The Girl With The Dragon Tattoo. EUA, 2012.
Direção: David Fincher
Roteiro: Steven Zaillian
Elenco: Rooney Mara, Daniel Craig, Stellan Skarsgård, Christopher Plummer, Robin Wright.

Por Caio Viana.

Que David Fincher é um diretor de talento, disso ninguém duvida, afinal filmes como Seven, Zodíaco, Clube da Luta e A Rede Social estão aí para servirem de prova. Porém, naquela que deveria ser sua obra com a tônica mais cruel e pesada, e por que não surpreendente, o diretor parece falhar ao se entregar a um final extremamente previsível, sem falar num anticlímax que corrói tudo o que havia sido mostrado até então. Antes de tudo quero que os leitores fiquem cientes que desconheço os livros e tampouco tive contato com a produção cinematográfica original, assim sendo, analisarei esse Millennium baseando-me unicamente no que pude presenciar.
Baseado no livro de Stieg Larsson, a trama se passa no centro de um labirinto de assassinatos, corrupção, segredos de família e dramas pessoais de dois parceiros improváveis em busca da verdade por trás de um mistério de 40 anos. Mikael Blomkvist (Daniel Craig) é um jornalista econômico determinado a restaurar a sua honra depois de ser condenado na justiça por difamação. Contratado por um dos industriais mais ricos da Suécia, Henrik Vanger (Christopher Plummer), para chegar ao fundo do desaparecimento, décadas atrás, de sua querida sobrinha Harriet – assassinada, supõe Vanger, por um dos integrantes da sua numerosa família – o jornalista se muda para uma ilha remota na costa gelada da Suécia sem a menor noção do que o aguarda. Ao mesmo tempo, Lisbeth Salander (Rooney Mara), uma investigadora genial de aparência bizarra da Milton Security, é contratada para levantar a ficha e os antecedentes de Blomkvist, uma missão que será o ponto de partida para que ela se junte a Mikael na investigação de quem matou Harriet Vanger. Embora Lisbeth tenha uma couraça que a isola do mundo que sempre a traiu, seu talento como hacker e foco singular se tornam ferramentas valiosas.
Tendo como montadores os parceiros habituais, Kirk Baxter e Angus Wall, Fincher nos presenteia logo nas cenas iniciais com sua habilidade incrível de fazer tudo fluir. Se Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres começa com um enredo difícil, cheio de pontas soltas que mantém os espectador confuso quanto ao rumo da história por um bom tempo, o cineasta trata de compensar incluindo transições praticamente invisíveis, como aquelas que vemos quando Blomkvist, saído do tribunal, vai a uma cafeteria. Outros exemplos podem facilmente ser encontrados ao longo da projeção, contando com a sempre eficiente equipe que recriou o universo de Larsson, como na cena em que, após um trauma, vemos Lisbeth numa casa de tatuagens e o som do motor do equipamento prossegue mesmo quando a passagem já terminou, tudo graças à trilha original de Trent Reznor e Atticus Ross.
Trilha essa que funciona quase como um personagem, não só por se intercalar aos sons diegéticos, mas também por ser tão distinta das composições as quais estamos habituados. Ela é pulsante, nervosa, lembrando constantemente ao espectador que a inquietação é um “dever natural” no universo de David Fincher. Como, por exemplo, não se deixar levar pelas potentes batidas que tocam na sequência de abertura? Através daqueles mais de dois minutos, toda a alma de Millenium transborda na tela. Escuridão, fogo, tecnologia, cabos, ouro negro, insetos… Cada elemento que constitui o início da fita é um símbolo do que está por vir.
E nenhuma metáfora seguraria a obra não fosse a capacidade dos seus atores de mergulharem fundo na sombria Estocolmo recriada pela direção de arte e cinematografia. Rooney Mara não é qualquer revelação. A atriz se encaixa tão bem naquele universo que é impossível discernir onde começa e onde termina a personagem. Obviamente, a transformação física é impressionante, mas a devassidão psicológica da qual emerge Lisbeth é ainda mais poderosa. Mesmo sendo tão distinta da nossa realidade, entendemos cada desvio de personalidade da garota, visto que tudo é muito bem justificado, mesmo que seja através do silêncio. Já Craig incorpora Blomkvist como um contrapeso a Lisbeth, mas não tão distante assim de seu mundo, só mantendo reais diferenças naquilo que exterioriza. Basta perceber, por exemplo, a relação que desenvolve com sua filha e a religião buscada pela mesma. Porém o ator, que funciona tão bem nas cenas que divide com Mara, perde forças em outras passagens, já que não é tão expressivo, lembrando em muitos momentos seus outros personagens.
E já que citei a fotografia de Jeff Cronenweth, discorro mais sobre ela ao falar da dicotomia criada entre os personagens principais no início da trama. Mesmo devastado pela derrota judicial, o mundo do jornalista Mikael apresenta cores quentes que se evidenciam em seu escritório ou na reunião familiar em casa, ao passo que, como esperado, em qualquer lugar que Lisbeth vá, a escuridão parece fazer parte de seu mundo. Logo após o derrame sofrido por seu tutor, acompanhamos a moça num vagão de metrô onde as luzes piscam incessantemente e a câmera foca em seu rosto. A sensação que fica é que a iluminação deixará de existir a qualquer momento e logo a hacker será tragada para as trevas que a cercam. Do outro lado, em Hedestad, assim que Blomkvist chega à ilha da família Vanger, o design de produção trata de nos informar o distanciamento daquele ambiente em relação ao restante do universo, seja pelo táxi mais antigo no qual o jornalista faz seu trajeto, até pelas construções que pontuam a ilha.
Numa película tão vasta a interpretações e tão dotada de detalhes – que serão encontrados em outras visitas à obra – fica a grande questão: como pode Fincher ter falhado depois de tantos acertos?


[Spoilers a partir daqui]

Ora, desde logo a escalação de Stellan Skarsgård revela-se um erro. Muito visto em papéis idênticos, fica evidente ao espectador a função que o ator desempenhará no transcurso da fita. E mesmo tentando apontar para o outro lado o tempo todo, o roteiro de Steven Zaillian jamais ludibria o público quanto ao que está por vir. E muito embora toda a projeção nade contra a maré, a coragem de Fincher – tão evidente na cena em que a câmera se distancia do iminente estupro que sofrerá Lisbeth, aliviando a alma do observador para, logo em seguida, atirá-lo no centro do incêndio – é abandonada ao final do filme, quando este se entrega a um desfecho para o assassinato de Harriet presente em nove de cada dez filmes policiais. A resolução do mistério com Blomkvist descobrindo o assassino vivido por Skarsgård é tão batida que esmorece tudo que havia sido tão bem executado até ali.
E antes Fincher e Zaillian tivessem parado por aí, mas a fim de ligar os pontos com uma possível continuação, quebram uma das regras fundamentais do cinema ao investirem numa conclusão longa, anticlimática e que se liga a uma parte da história que já tínhamos deixado para trás, o que funcionaria, contudo, como início de uma outra produção. E mesmo que a quebra do elo entre Lisbeth e Blomkvist seja algo fundamental, todo o plano contra o algoz judicial do jornalista não tem qualquer efeito sobre a trama que já havia se costurado. Alguns poderão argumentar que é dessa forma que ocorre no livro (e não sei se é o caso), mas mesmo que isso se confirme, Fincher tinha a obrigação de conferir seu toque pessoal à obra, como o fez em tantos outros casos. O cinema é um mundo distinto e, portanto, auto-suficiente. Que o digam Peter Jackson e Francis Ford Coppola com suas adaptações a princípio controversas, mas que o tempo provou serem as melhores escolhas.
Ainda assim, Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres termina com um saldo para lá de positivo e é, desde já, um dos grandes filmes do ano.

Caio Viana é Crítico de Cinema editor do blog Cinematrilha.

Um comentário:

  1. Na minha opinião, quem viu a versão original não irá gostar dessa, ficou devendo muito...

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